Ela aprendeu a crescer nos
espaços. Nos vãos que restavam entre a parede e os degraus da escada e onde
sentada viu o tempo subir seus degraus. Na pequena brecha aberta entre o
corredor frio e a sala mal iluminada com um piano quase sempre intocado ela achava
um espaço pra crescer. Crescia sua alma quando misteriosamente alguém o
tocava e deixava ser seus olhos as
únicas luzes naquele casarão velho quando achava algum inseto percorrendo tão
forasteiro o chão de seu quarto.
Ela cresceu assim. Ela se fez subindo
suas montanhas de livros. Deixado manchas de café e de lágrimas pelas páginas,
marcas tão adoráveis, impressões suas em seus maiores companheiros, seus
conselheiros e amigos de suas angústias. E ela nunca abriu a boca pra reclamar,
porque todo seu universo empoeirado e solitário lhe cabia. Esse universo a
abraçava e lhe vestia, e era um vestido azul desbotado, com belos babados mas
desgastados e sapatos os quais amava e começava a lhe espremer os dedinhos.
E assim, nem pequena e nem grande,
ela se punha de pé diante da janela e assistia de longe as crianças que riam e
jogavam pedras nos quintais. Ela assistia em silencio e tentava entender cada
grito distorcido que lhe chegavam tão incompreensíveis aos ouvidos. Ela
entendia de letras, mas os sons lhe eram tão ilegíveis quanto podiam. E da
janela também via quando o verão chorava suas chuvas por sobre o quintal e
quando o outono desnudava a grande arvore com um velho balanço quebrado.
E só se esquivava de seu pequeno
altar enjaulado quando Irmã Olga lhe gritava num tom brusco para que descesse
as escadas para comer. Quase sempre a sopa, que engolia tão sem gosto, mas lhe
enchia o estomago. Força para ficar de pé novamente diante da janela, diante da
porta quase fechada do piano, diante das joaninhas que lhe invadiam o quarto. E
assim ela passava seus dias. Diferente de seus semelhantes que lhe tentaram
fazer como irmãos e que dividiam com ela aquilo que nunca pôde se chamar de
lar. Nem ela nem os demais. E todos sob ordem de Irmã Olga se deitavam cedo,
mas ela nunca dormira aquecida. Toda noite lhe era fria.
Um dia qualquer, desses que
acordam mudos e com desdém sobre os que não têm sobrenome tudo mudou. Foi à
noite. A menina passara o dia a costurar para uma amiga de Irmã Olga, leu
algumas poesias de seu mais “novo” livro sem capa de um escritor francês de
nome engraçado e procurava insetinhos (amava as borboletas, mas elas raramente
apareciam) quando ouviu gritos diferentes. Gritos que eram de desespero se os soubesse
interpretar.
Não precisou entendê-los. Irmã
Olga lhe vira alheia e lhe puxara pelo braço correndo escadas à baixo, saído do
casarão. Foi quando ela viu. Uma grande coluna de fogo criando nuvens para a
noite escura em um dos quartos. Ali ela ficou assistindo, do outro lado da
janela, junto com todos os outros o fogo lhe levar embora seus espaços onde ela
crescia.
E assistiu as chamas escorregarem
pelas madeiras velhas. Assistiu até que num ato tão nunca feito ela de puxão se
soltou de Irmã Olga e meteu-se a correr rumo à casa. E corria, e corria rumo ao
fogo, rumo de onde fugira. Ele enfrentava agora tudo que sempre a oprimiu. Irmã
Olga lhe gritava desesperada, mas travada pelo medo não lhe corria trás. Só
esbravejava para que voltasse a menina estranha. Mas a menina só corria.
Corria e seu sapato parecia
espremer-lhe mais os dedos, seu vestido agora rasgado e com farpas um tanto
menor. Sem entender todos os gritos de
Irmã Olga ela só corria... Ela não sabia
ouvir. Ela não sabia entender... Nunca o
soubera. Cada grito lhe entrava na alma como sopa ao estomago, tão sem sentido
e preenchendo tão fraco o interior de seus ouvidos. Então, continuou correndo
em direção às chamas... Os gritos de
Irmã Olga tinham raiva e preocupação que lhe soaram sempre como afeto e foi
assim que ela os interpretou quando pela ultima vez olhou pra traz antes de
enfrentar as chamas.
Ela bateu um cotovelo no portão e
ele ardia de febre. Ela continuou correndo e as escadas já começavam a evoluir pra brasas. Havia vãos tão maiores nela quando num estrondo o fogo a tombou e a menina viu já do segundo andar.
Sem se abater e nem perceber o babado do vestido que agarrou pela borda uma fagulha ela
correu ao quarto. Ela viu a cama que queimava. A cama que sempre tão fria nunca
a aquecera. Ela assistiu os livros ainda não terminados alimentando o fogo e num
olhar rápido viu ao chão um pequeno grilo. Tão veloz ela o pegou com suas mãos
sujas de borrões pretos e voltou ao corredor rumo ao seu destino. Tossia.
Sentiu quando a fagulha de seu
babado ( agora uma pequena língua de fogo) lhe tocara a perna e sem gritar nada
pôs-se a apagá-lo com a mão sem o grilo e sem parar de andar rumo à sala do
piano. Ao chegar diante da porta não viu a brecha de sempre. Não mais havia
porta. O fogo lhe abrira o caminho para seu sonho. E ela viu o piano. E ele
ainda não ardia. E ela percebendo sua respiração ofegante mas não sua tosse
deixou por um instante de correr. Não sentiu as outras fagulhas que choveram
sobre seu sapatinho. Só se sentou no banco e assistiu cada tecla.
Ali o único som que por toda sua
vida lhe fizera sentido. E ela sentou e apertou uma tecla. O som da tecla em
seus ouvidos mais alto que o som do quarto ao lado que acabara de desabar pelas
chamas.
Ela apertou uma tecla preta e
combinava com suas mãos ainda sujas.
Ela começou a apertá-las juntas, e
desgovernada pôs-se a dedilhar as teclas. Não saía harmonia nenhuma, mas um
sorriso tinha iluminado pelas chamas na face da menina.
Era a melodia de sua vida inteira.
Acredite, sua vida inteira.
Sentada ali diante do piano, das
teclas pretas e brancas, a menina que assistia a janela sucumbiu à fumaça. Deitada
por sobre as teclas sua vida se silenciou. O seu ultimo som foi o som de seu
sonho e também o último som do piano.
Ali ela ficou até que tudo viesse
abaixo e suas cinzas se misturassem às da escada e do piano e do grilo.
A última coisa que sei é que seus
olhos brilhavam antes de se fecharem pela ultima vez. Pelas chamas que as suas
palavras alimentaram e agora dançavam como vaga-lumes ouvindo sua sinfonia.
Sua vida inteira...