terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Uma vida inteira





Ela aprendeu a crescer nos espaços. Nos vãos que restavam entre a parede e os degraus da escada e onde sentada viu o tempo subir seus degraus. Na pequena brecha aberta entre o corredor frio e a sala mal iluminada com um piano quase sempre intocado ela achava um espaço pra crescer. Crescia sua alma quando misteriosamente alguém o tocava  e deixava ser seus olhos as únicas luzes naquele casarão velho quando achava algum inseto percorrendo tão forasteiro o chão de seu quarto.
Ela cresceu assim. Ela se fez subindo suas montanhas de livros. Deixado manchas de café e de lágrimas pelas páginas, marcas tão adoráveis, impressões suas em seus maiores companheiros, seus conselheiros e amigos de suas angústias. E ela nunca abriu a boca pra reclamar, porque todo seu universo empoeirado e solitário lhe cabia. Esse universo a abraçava e lhe vestia, e era um vestido azul desbotado, com belos babados mas desgastados e sapatos os quais amava e começava a lhe espremer os dedinhos.
E assim, nem pequena e nem grande, ela se punha de pé diante da janela e assistia de longe as crianças que riam e jogavam pedras nos quintais. Ela assistia em silencio e tentava entender cada grito distorcido que lhe chegavam tão incompreensíveis aos ouvidos. Ela entendia de letras, mas os sons lhe eram tão ilegíveis quanto podiam. E da janela também via quando o verão chorava suas chuvas por sobre o quintal e quando o outono desnudava a grande arvore com um velho balanço quebrado.
E só se esquivava de seu pequeno altar enjaulado quando Irmã Olga lhe gritava num tom brusco para que descesse as escadas para comer. Quase sempre a sopa, que engolia tão sem gosto, mas lhe enchia o estomago. Força para ficar de pé novamente diante da janela, diante da porta quase fechada do piano, diante das joaninhas que lhe invadiam o quarto. E assim ela passava seus dias. Diferente de seus semelhantes que lhe tentaram fazer como irmãos e que dividiam com ela aquilo que nunca pôde se chamar de lar. Nem ela nem os demais. E todos sob ordem de Irmã Olga se deitavam cedo, mas ela nunca dormira aquecida. Toda noite lhe era fria.
Um dia qualquer, desses que acordam mudos e com desdém sobre os que não têm sobrenome tudo mudou. Foi à noite. A menina passara o dia a costurar para uma amiga de Irmã Olga, leu algumas poesias de seu mais “novo” livro sem capa de um escritor francês de nome engraçado e procurava insetinhos (amava as borboletas, mas elas raramente apareciam) quando ouviu gritos diferentes. Gritos que eram de desespero se os soubesse interpretar.
Não precisou entendê-los. Irmã Olga lhe vira alheia e lhe puxara pelo braço correndo escadas à baixo, saído do casarão. Foi quando ela viu. Uma grande coluna de fogo criando nuvens para a noite escura em um dos quartos. Ali ela ficou assistindo, do outro lado da janela, junto com todos os outros o fogo lhe levar embora seus espaços onde ela crescia.
E assistiu as chamas escorregarem pelas madeiras velhas. Assistiu até que num ato tão nunca feito ela de puxão se soltou de Irmã Olga e meteu-se a correr rumo à casa. E corria, e corria rumo ao fogo, rumo de onde fugira. Ele enfrentava agora tudo que sempre a oprimiu. Irmã Olga lhe gritava desesperada, mas travada pelo medo não lhe corria trás. Só esbravejava para que voltasse a menina estranha. Mas a menina só corria.
Corria e seu sapato parecia espremer-lhe mais os dedos, seu vestido agora rasgado e com farpas um tanto menor.  Sem entender todos os gritos de Irmã Olga ela só corria...  Ela não sabia ouvir. Ela não sabia entender...  Nunca o soubera. Cada grito lhe entrava na alma como sopa ao estomago, tão sem sentido e preenchendo tão fraco o interior de seus ouvidos. Então, continuou correndo em direção às chamas...  Os gritos de Irmã Olga tinham raiva e preocupação que lhe soaram sempre como afeto e foi assim que ela os interpretou quando pela ultima vez olhou pra traz antes de enfrentar as chamas.
Ela bateu um cotovelo no portão e ele ardia de febre. Ela continuou correndo e as escadas já começavam a evoluir pra brasas. Havia vãos tão maiores nela quando num estrondo o fogo a  tombou e a menina viu já do segundo andar. Sem se abater e nem perceber o babado do vestido que agarrou pela borda uma fagulha ela correu ao quarto. Ela viu a cama que queimava. A cama que sempre tão fria nunca a aquecera. Ela assistiu os livros ainda não terminados alimentando o fogo e num olhar rápido viu ao chão um pequeno grilo. Tão veloz ela o pegou com suas mãos sujas de borrões pretos e voltou ao corredor rumo ao seu destino. Tossia.
Sentiu quando a fagulha de seu babado ( agora uma pequena língua de fogo) lhe tocara a perna e sem gritar nada pôs-se a apagá-lo com a mão sem o grilo e sem parar de andar rumo à sala do piano. Ao chegar diante da porta não viu a brecha de sempre. Não mais havia porta. O fogo lhe abrira o caminho para seu sonho. E ela viu o piano. E ele ainda não ardia. E ela percebendo sua respiração ofegante mas não sua tosse deixou por um instante de correr. Não sentiu as outras fagulhas que choveram sobre seu sapatinho. Só se sentou no banco e assistiu cada tecla.
Ali o único som que por toda sua vida lhe fizera sentido. E ela sentou e apertou uma tecla. O som da tecla em seus ouvidos mais alto que o som do quarto ao lado que acabara de desabar pelas chamas.
Ela apertou uma tecla preta e combinava com suas mãos ainda sujas.
Ela começou a apertá-las juntas, e desgovernada pôs-se a dedilhar as teclas. Não saía harmonia nenhuma, mas um sorriso tinha iluminado pelas chamas na face da menina.
Era a melodia de sua vida inteira.
Acredite, sua vida inteira.
Sentada ali diante do piano, das teclas pretas e brancas, a menina que assistia a janela sucumbiu à fumaça. Deitada por sobre as teclas sua vida se silenciou. O seu ultimo som foi o som de seu sonho e também o último som do piano.
Ali ela ficou até que tudo viesse abaixo e suas cinzas se misturassem às da escada e do piano e do grilo.
A última coisa que sei é que seus olhos brilhavam antes de se fecharem pela ultima vez. Pelas chamas que as suas palavras alimentaram e agora dançavam como vaga-lumes ouvindo sua sinfonia.
Sua vida inteira...